"O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos daqueles que o compõem." (Rubem Alves)

sexta-feira, 24 de junho de 2011

IRREGULARIDADES NO TRANSPORTE ESCOLAR




Irresponsabilidades provocam as chamadas "fatalidades" nos acidentes com alunos

Aracati: a ocorrência de mais uma tragédia envolvendo ônibus escolar nesta semana no Ceará traz à tona, outra vez, a qualidade do serviço público oferecido para milhares de estudantes em todo o Estado. Veículos velhos, sem equipamentos mínimos de segurança, em pouca quantidade para transportar muita gente por longas distâncias, crianças e adolescentes que não são orientados para um transporte seguro, porque nem mesmo os gestores municipais garantem a qualidade desse transporte. O que chamam de "fatalidade" se revela em coincidência de irresponsabilidades. E uma prática comum em Municípios: a terceirização do serviço já terceirizado, aumentando a distância entre poder público e o serviço prestado. Um seguimento que anualmente movimenta milhões de reais em todo o Estado, o transporte escolar ainda é objeto de "malversação dos recursos públicos", um eufemismo para desvio de dinheiro.

Fato consumado

Acidente de trânsito com estudante é um risco anunciado e, vez por outra, fato consumado. Estava "abarrotado de gente", segundo várias testemunhas, o ônibus em que a estudante Mônica Kelly Santos Silva partia do Centro de Aracati para a comunidade Baixio, onde morava com a família. Mas é assim de segunda a sexta-feira, com ou sem Mônica. São muitos alunos, de várias escolas, amontoados em cadeiras e corredores apertados. Alguns percorrem até 30Km entre casa e escola, e a distância pode aumentar para 60Km quando os estudantes são universitários.

Quando deixou de andar em pau-de-arara até a escola, a estudante Ana Amélia, de 18 anos, pensou que seus problemas tinham acabado, mas o que já acabou foi o freio no ônibus escolar no caminho entre sua casa e a escola pública onde estuda no Centro de Aracati. "Até agora não aconteceu nada grave com a gente, mas nem por isso deixamos ter medo", conta.

Conforme noticiou o jornal na última quarta-feira, Mônica Kelly Santos Silva, de 15 anos, morreu terça-feira passada depois que colocou parte do corpo fora do ônibus e teve a cabeça ceifada quando o veículo passou perto de um poste. Aparentemente, e até agora segundo as investigações da Polícia, o acidente fatal nada teria relação com a qualidade do transporte escolar. Fosse num veículo novo, a fatalidade ainda assim se consumasse. Ou não.

Logo após a morte da estudante, a reportagem encontrou uma série de erros que pode dar ideia de com quantas irresponsabilidades se faz uma "fatalidade": ausência de tacógrafo, equipamento que regula a velocidade e obrigatório nesse tipo de veículo, estrutura interna visivelmente precária, falta de adesivo de identificação do tipo de transporte que fazia. Esse último problema tem por causa um outro mais grave: o veículo não tinha autorização para o transporte escolar.

De acordo com o que a Polícia Civil apurou, o proprietário do ônibus que conduzia a estudante Mônica Kelly estava com o verdadeiro transporte escolar na oficina para reparos. A secretária municipal de Educação de Aracati, Ana Maria Albuquerque, disse que não sabia da troca, que não deveria ter ocorrido sem uma autorização. "A troca de ônibus foi feita à revelia da Prefeitura Municipal", justificou. A secretária admite que é difícil um acompanhamento diário da situação de cada ônibus.

Mas a reportagem obteve documentos que comprovam não só que a troca irregular foi feita como, exatamente um dia antes da morte da estudante, o Departamento de Trânsito de Aracati lavrou um auto de infração contra o mesmo ônibus, justamente por não ter autorização para transportar crianças e adolescentes para as escolas. E não para por aí: o veículo em que a estudante foi morta tem 28 anos de uso. Até mesmo as janelas, com abertura maior que o comum, estão fora dos parâmetros exigidos pelo Detran para transporte escolar.

Terceirização

O caminho entre poder público e serviço prestado em Aracati é o seguinte: a Prefeitura de Aracati paga à empresa Opção Locadora e Serviços para realizar o transporte escolar. Mas a própria empresa não possui tais ônibus e contrata outras empresas proprietárias desses veículos, que por sua vez contratam motoristas profissionais. É a terceirização do serviço terceirizado, atividade "comum", segundo a secretária, nos Municípios cearenses. No ano passado, a Opção Locadora e Serviços foi considerada "inabilitada" pela Comissão Permanente de Licitação de Aracati para realizar o transporte escolar. Curiosamente, de janeiro de 2007 a 16 de junho de 2011, a Opção recebeu da Prefeitura de Aracati, o montante de aproximadamente R$ 8,4 milhões. As informações estão no Portal da Transparência.

O Projeto Caminhos da Escola, do Governo Federal em parceria com Estados e Municípios, para aquisição de ônibus escolares, não chegou a Aracati. A Prefeitura só é dona de um ônibus escolar, num universo de aproximadamente 60 veículos que realizam 96 rotas diárias entre comunidades rurais e as escolas públicas na zona urbana. Mesmo assim, dois anos atrás, o prefeito Expedito Ferreira obteve aprovação junto ao tesouro municipal, por meio da Câmara de Vereadores, de uma concessão de crédito para aquisição de transporte escolar.

No entanto, o recurso parece não ter sido utilizado. Enquanto isso, dia e noite ônibus com três décadas de uso fazem o transporte irregular de crianças, adolescentes e adultos para escolas em Aracati, trafegando pela BR-304 e CE-040, além de estradas carroçáveis.

MAIS INFORMAÇÕES

Para Denunciar transporte escolar irregular circulando na sua cidade ligue para o Ministério da Educação, telefone 0800.616161

RECURSOS FEDERAIS
Mais verbas não melhoram o serviço

Ônibus que caíram em desuso no transporte interurbano de passageiros são usados para os estudantes

Tanto quanto sala de aula, livros e professor, o estudante da escola pública necessita de dois outros bens básicos: merenda e transporte escolar. Menos da metade dos estudantes nordestinos avaliam como boa a merenda que recebem. No Ceará, 60% da frota escolar é composta por carros adaptados, mas inadequados para o serviço. A notícia piora: pelo menos um em cada dez estudantes deixam de ir à escola por causa da dificuldade de transporte. Os repasses federais e estaduais para aquisição de transporte escolar não estão traduzidos em melhorias desse serviço público. Até mesmo a contra-partida do Governo do Estado em doar um ônibus escolar para cada veículo desses comprados pelas Prefeituras tem a resistência dos gestores municipais.

A alternativa pela terceirização do serviço, pagando quantias milionárias após licitações pouco transparentes, ainda é uma realidade comum na maioria dos Municípios cearenses. Na semana passada, em Aracati, a reportagem flagrou, na mesma noite da morte da estudante Mônica Kelly, vários ônibus escolares sem adesivos de identificação e com relatos, pelos alunos, de panes nos veículos em um ou outro dia de translado entre sede e zona rural.

"São ônibus que caíram em desuso para transporte interurbano de passageiros, inclusive de Fortaleza e, como não obedecem mais aos parâmetros do Código de Trânsito e para não virar sucata, são trazidos para Aracati. É tanta irresponsabilidade que parece que carregam bicho", afirma o vereador Tácito Forte, que pediu esclarecimentos ao Departamento de Trânsito de Aracati e à Secretaria Municipal de Educação sobre o uso irregular de ônibus como o que trazia a estudante morta tragicamente.

Um dia antes da tragédia em Aracati, um ônibus escolar bateu na parede de uma residência a poucos metros da Escola Beni Carvalho, a mesma em que estudava a garota Mônica Kelly. O veículo estava cheio de estudantes, a gritaria foi geral. A parede da casa só não arrombou porque, na parte interna, havia vários tijolos encostados. A dona da casa guardou a peça que caiu do ônibus para depois reclamar reparos à sua residência.

Precariedade

Os recursos do Programa Nacional de Apoio ao Transporte Escolar para este ano são de R$ 644 milhões, cerca de 8% mais que o valor no ano passado. Mas na disputa entre Estados e Municípios, esse recurso chega à ponta como o estudante que chega na escola após duas horas de translado: sem força para o devido aproveitamento.

Melquíades Júnior
Colaborador

Fonte: DIÁRIO DO NORDESTE, edição do dia 24.06.2011 (com pequenos ajustes)